O coração e o gato

Passeando pela net, encontrei esse texto. Muito bom para refletir sobre a necessidade das telas, tanto em apartamentos como em casas. Quem ama DE VERDADE cuida!
Créditos a Toca dos gatinhos .

Nesta altura da vida, eu já andava bem cansado de ficar batendo meio que à toa. Combalido e machucado, algumas seqüelas e cicatrizes faziam de mim um coração doente e imprestável. Trabalhava de teimoso, como que por hábito, mas não deixava de namorar a idéia de como seria bom descansar de uma vez.

Ele chegou assustado, sozinho e com medo. Fora expulso de casa. Era pequenino, de muita pouca idade. O olhar denunciava que ainda não estava entendendo bem o que tinha acontecido com ele: de uma hora para outra ficara sem família, sem mãe, sem irmãozinhos, sem comida e sem aconchego. De seu, só o pelo macio e os olhos azuis de um lindo gatinho.

Nosso olhar se cruzou e nos agarramos um ao outro imediatamente. Dois náufragos. Dois sobreviventes. Dois desesperados. Dois abandonados. Sabíamos que era nossa última chance. De que? Não sabíamos. Mas tínhamos certeza que, se permanecêssemos juntos, tudo seria melhor e mais suportável.

Ele me esquentou, lambeu minhas feridas tentando cicatrizá-las. Aos poucos comecei a trabalhar com mais disposição e vontade. Foi me dando coisas que já julgava perdidas ou sepultadas. Ao pegá-lo no colo e colocar sua cabecinha sobre o meu ombro, tinha a mesma exata sensação de ter nos braços meu filhinho quando era bebê. A mesma temperatura, o mesmo corpinho e a mesma maciez. Até o cheirinho era parecido. Era como voltar no tempo vinte e cinco anos.

De vez em quando, corria igualzinho a uma das gêmeas quando pequena. Corrida feita de uns pulos meio desengonçados, mas cheios de alegria.

Da outra, tinha a mesma mania de pedir muita atenção. O olhar suplicante e sem-vergonha era o mesmo. A expressão da carinha chantagista, que sabia que bastava para conseguir o que queria.

De meu pai, o jeito de tomar conta de mim, ficando sempre por perto e dormindo a meu lado. O guardião. E de minha mãe, a mania de brincar com meus cabelos, despenteando tudo. Às vezes, eu fantasiava que todos os meus queridos já idos estavam encarnados no gato.

E do meu amor, meu único e eterno amor, o encostar-se ao colo nos dias mais frios. Ou o esticar da pata me procurando para conferir se eu estava mesmo ali. O mesmo entendimento sem palavras.

Aos poucos, o gato virou um relicário de minhas coisas boas. De lembranças mais palpáveis e sensações maravilhosas e perdidas há muito. Juntos, conseguímos escutar o barulho do mar em plena poluição de São Paulo, o cheiro de mato molhado mesmo cercados pelo concreto. Ao nos ver juntos, a Lua se tornava tagarela e danava a contar histórias de astronautas. E o Sol, com inveja, tratava de nos aquecer e ninar nossos cochilos.

Ele e eu conversávamos bastante. Trocávamos idéias e histórias. Foi assim que fiquei sabendo que cada estrela do céu corresponde à alma de um gato valente que deixou tantas saudades que acabou se transformando em estrela para que seu dono possa ter algum consolo quando olha para o céu.

Contou-me também, como são feitos a bondade e o carinho. Quais suas matérias primas e como devem ser usados. A mesma coisa em relação ao amor e à amizade.

Não foram poucas as madrugadas em que eu, descompassado de medo e angústia, sem conseguir entrar num ritmo normal, fui sendo acalmado por ele, infalível em me colocar nos eixos de novo. Ou, quando a procurar pelos sonhos trancados na escuridão da desesperança via com ele uma chavezinha meio enferrujada que, com um pouco mais de paciência acabaria abrindo aquelas trancas.

Em uma linda manhã de sexta-feira acordei e ele não estava comigo. Comecei a bater daquele jeito pesado e descompassado que antecipa as grandes tristezas. Senti no meu fundo que ele não existia mais. Seu corpinho estava treze andares abaixo. E com ele, tudo aquilo que por mais de um ano ele fora guardando dentro dele para mim. Quis sair deste peito que me aprisiona. Quis ir atrás dele. Trazê-lo de volta. Trocar de lugar com ele. Qualquer coisa para aquele momento não existir, não estar acontecendo.

Por quê? Será que ele vira a tal da Ponte do Arco-íris e resolvera atravessá-la? Dizem que é para onde vão os animais queridos e aonde, no nosso dia, iremos também, para encontrá-los. Ou será que, um pouco mais prosaico, ele viu um passarinho e achou que poderia voar? Ou será que carregar todos os meus fardos se tornara insuportável? Será que eu o sobrecarregara demais? Será que exigira dele além de sua capacidade de amar?

Com isto, agora ostento uma rachadura que vai de cima abaixo e que dói muito. Ela sangra sem parar e não está com jeito de que vá cicatrizar tão cedo. Vivo apertado e encolhido, funcionando mal, de tanta dor. O pior, é que todas as outras cicatrizes, que estavam quase sumindo, voltaram a latejar e incomodar. Aquela que é a das saudades é a pior de todas. E sei, no meu âmago mais profundo, que esta é que vai acabar sendo a responsável por uma falha aqui, outra ali, até que eu pare completamente.

O Coração de Denise Cordts - uma singela homenagem a Chilique.